Campinas, SP, 17 de Março de 2.000.
Havia perdido a carteira de identidade já fazia algum
tempo e por absoluta falta de tempo fui deixando o tempo
passar até que certo dia, arrumando um tempo fui até o
Poupa Tempo da capital paulista a fim de ver se
conseguia tirá-lo com maior brevidade.
Ledo engano, pois ali me dei conta que além de não
poupar o tempo, ainda percebi que era pura falta de
profissionalismo dos funcionários do Estado que
prestavam determinado tipo de serviço.
Eu sabia que eu era eu. Possuía a cópia da carteira de
identidade perdida reconhecida a sua originalidade por
um juiz de direito legalmente empossado em seu cargo.
Possuía também a carteira de reservista e o título de
eleitor, porém, o eficiente funcionário público me pediu
a certidão de nascimento ou a certidão de casamento.
- Moço! Se eu tivesse estes documentos em
mãos eu teria trazido, mas a apresentação da cópia da
identidade antiga, o título de eleitor e a carteira de
reservista não bastam?
Perguntei tentando manter a calma.
- Não!
Respondeu secamente o funcionário.
- Mas concorda que a foto na carteira de reservista é a
minha?
- Não! Na foto você estava com dezoito anos.
- Mas não vê que os traços são meus?
- Não!
- Moço! Você percebeu que a cópia da identidade perdida
foi autenticada e assinada por um juiz de direito?
- Você trouxe o juiz junto? Se trouxer ele aqui eu dou
entrada nos protocolos.
Eu já ia mandar o funcionário às favas, mas não sei como
e nem por que me segurei e acabei indo embora reclamando
daquele sistema corrompido que só queria fazer as
pessoas perderem tempo.
- Porque está bravo?
Perguntou-me um desconhecido diante do posto.
- Pela incompetência do governo que exige demais.
- O que houve?
Eu já ia mandar aquele rapaz andar, mas me contendo
contei o ocorrido e ele para minha surpresa me falou que
seu eu quisesse uma identidade ele tiraria em duas horas
e viria assinada pelo mesmo delegado que assinava dentro
do posto.
- Como assim?
- Como acha que o sistema gira?
- Sei lá, mas não me interessa, obrigado.
- Se mudar de idéia estou sempre por aqui.
Não ia mudar de idéia, mas fui embora xingando aquele
sistema sujo e corrupto, pois se era o mesmo delegado
que assinava pelas vias oficiais e pela via alternativa
algo estava errado.
Eu ainda era inocente e não acreditava que aquilo
ocorresse assim tão descaradamente. Caminhei em direção
à estação do metrô e quanto mais eu andava mais eu
reclamava, pois eu era uma pessoa que não tinha tempo
para quase nada e com muito custo naquele dia dei um
jeito de arrumar um tempinho para ir até aquele tal de
Poupa Tempo e o que mais perdi foi justamente tempo.
Para que eu levasse a certidão de casamento ou teria que
ir atrás da ex, ou teria que ir para o interior buscar.
A certidão de nascimento era quase a mesma situação e de
qualquer forma estava a minha total falta de tempo e por
falta de tempo fui deixando para lá e o tempo foi
passando.
Alguns meses depois, fui realizar serviço de consultoria
na região da cidade de Campinas e tive a oportunidade de
ir até o Poupa Tempo de lá e a por incrível que pudesse
imaginar, lá, o funcionário aceitou a cópia da minha
carteira de identidade e pediu que eu fosse retirar a
nova dentro de três dias.
Sai dali feliz da vida. Finalmente depois de vários
meses eu iria pegar novamente meu documento oficial e
original. Fui embora e aqueles dois dias o trabalho
rendeu mais que geralmente rendia pela minha satisfação
e alegria, mas mal poderia imaginar que uma fatalidade
iria me derrubar de cara no chão.
Três dias depois lá estava eu para retirar meu
documento. Eu havia terminado o serviço e após pegar a
carteira eu voltaria para casa na capital. Eram
dezesseis e vinte quando fui até o balcão de retirada.
Identifiquei-me e entreguei o protocolo para o
funcionário. Este pediu para que eu aguardasse um pouco
e foi lá para dentro. Fiquei ali esperando e percebi que
ele voltou acompanhado de outra pessoa e voltaram ambos
para dentro. Pouco tempo depois outra pessoa apareceu na
porta, olhou para mim e voltou para dentro. Estranhei
aquilo, mas permaneci por ali. Havia algo de errado, mas
como não devia nada fiquei esperando.
Passou-se em torno de quinze minutos duas pessoas se
aproximaram de mim e pediram para que eu os
acompanhasse. Estranhei e sem me dar conta de nada
acompanhei os dois e entramos em uma pequena sala.
- O barraco caiu malandro. Você está preso.
- Como?
- Você está preso.
- Eu preso! Por quê?
Perguntei assustado.
- Ainda tem a cara de pau de perguntar mano? Falsidade
ideológica.
- Não estou entendendo. O que foi que eu fiz?
- Você é doido ou está querendo dar uma de besta?
- Não sei do que está falando.
- Mete a pulseira nele e leve-o para o
DP. Que cara mais filho da puta. Vem fazer documento
falso e ainda quer tirar uma da minha cara.
Disse a pessoa bem mal educada.
- Espera ai moço. Eu não sei do que está falando.
- Leve este filho da puta embora daqui antes que eu
encha a cara dele de porrada.
- Está cometendo um engano.
- Deixa de ser filho da puta. Leve logo
este marginal daqui.
Eu ainda tentei argumentar algo, mas não teve jeito.
Dois truculentos policiais civis me agarraram, colocaram
algemas bem apertadas e me levando para fora me jogaram
atrás de uma viatura e levaram-me para o primeiro
Distrito Policial e mal sabia eu que meu drama estava
apenas começando.
Os dois policiais fizeram questão de judiar o máximo que
puderam de mim e demoraram em levar-me até o Distrito e
pareceu-me que deram uma volta por toda a cidade somente
com a finalidade de me fazerem sofrer.
Quando colocaram aquelas algemas, fizeram questão de
colocar meus braços para trás e apertaram de tal forma
que chegou a cortar e esfolar os mesmos e eles passavam,
para judiar, nas lombadas com tudo e faziam curvas
demasiadas fechadas apenas para me ver sofrer.
- Está doendo os braços ai malandro?
Perguntou-me um deles.
Preferi nada dizer, mesmo porque a dor causada por
aquelas argolas estavam me arrancando lágrimas dos
olhos. Permaneci calado e de repente pararam diante do
distrito policial. Eles desceram, abriram a porta
traseira e rindo da minha cara ainda tiveram o desplante
de dizer...
- Foi mal, mas era isso ou o Agnaldo iria querer te
pegar lá dentro do cadeião.
- Cadeião? O que é isso?
- Uma cadeia grande. Bem grande.
Respondeu o outro rindo.
- Mas não fiz nada para estar preso.
- Não! Você não fez nada, fui eu quem fez.
Respondeu rindo.
Levaram-me para dentro do distrito e me algemaram a uma
barra na parede e me fizeram sentar em um bando de
concreto e ali permaneci por um tempo indeterminado até
que uma pessoa veio até mim e levou-me para a sala dele.
Era o delegado do distrito.
- Que merda! Eu tinha um aniversário para ir hoje e o
delegado que viria me render aqui está atrasado e para
agravar o porra do escrivão da noite ainda não chegou e
não sei preencher os BO´s.
- Doutor! Eu não fiz nada. Estão me acusando sem eu ter
culpa.
- Bem! Se tiver culpa ou não, aqui diz que foi pego em
flagrante querendo tirar documento falso dentro de uma
unidade do Estado.
- Mesmo que eu fosse um imbecil, coisa
que não sou doutor, se fosse fazer isso iria comprar uma
sem risco lá na capital.
Respondi me lembrando do rapaz de outro dia.
- Realmente você não tem cara e nem jeito de quem é
marginal. O que você faz da vida?
- Eu trabalho com consultoria e o senhor
poderá comprovar isso se ligar para três empresas que eu
prestei serviço para elas até hoje à tarde.
- Infelizmente isso não compete a mim moço. Você foi
preso em flagrante e caberá a um juiz decidir de é
culpado ou não. Por hora tenho que fazer o BO e como já
passou das dezoito horas, serei obrigado a lhe enviar
para o cadeião da cidade.
- Cadeião doutor?
- É! Lá é uma velha penitenciária feminina que foi
desativada e agora serve de cadeia de apoio antes que os
presos sejam levados para a penitenciária.
- Penitenciária?
- Exatamente isso. Você sabia que o antigo complexo do
Carandiru foi transferido aqui para a cidade vizinha de
Hortolândia?
- Sabia sim. Tenho amizade com o Geraldo.
- Que Geraldo?
- O vice-governador do Estado.
- Pode parar. Agora vai dizer que é amigo do
vice-governador?
- Acredite ou não sou sim.
- Tudo bem. Está com fome?
- Como doutor?
- Vou pedir uma pizza e este filho da puta do escrivão e
do meu substituto que não chegam.
- Posso lhe pedir um favor doutor?
- O que é? Não é para lhe deixar ir embora, é?
- Gostaria disso, mas não é isso não. Eu vim de carro
para cá e queria ligar para São Paulo para que meu
cunhado venha buscá-lo.
- Pode sim. Espere. Deixe-me tirar estas algemas de
você, por que sei que não irá fugir e daí pode ligar.
- Posso ligar de meu celular?
- Não tiraram isso de você?
- Tiraram um só. O outro estava no bolso
e não pediram e eu também não entreguei.
- Gostei de você. Pode usar o seu telefone sim.
Apesar da situação sorri e pegando meu celular liguei
para meu cunhado e por cima lhe expliquei o que estava
acontecendo e pedi se ele poderia vir buscar meu carro
que estava em um estacionamento que ficava aberto até as
vinte e uma horas.
- Será que dará tempo de eu chegar ai?
Perguntou-me meu cunhado.
- Faça dar tempo. Senão eles vão sumir com meu carro.
- Estou saindo daqui agora.
- Onde está o seu carro?
Perguntou-me o delegado.
- No estacionamento ao lado do Poupa Tempo.
- Qual deles?
- Este aqui. E mostrei-lhe o papel que me deram por lá.
- É de meu primo este estacionamento. Quer que eu peça
para que ele traga ele aqui?
- Pode fazer isso?
- Se me autorizar sim. Como eu disse gostei de você e
não vou querer arrumar inimizade com um amigo do futuro
governador do Estado, porque ele deva sair candidato e
deverá ganhar. A propósito meu nome é Roberto.
- Falta muito tempo para as próximas eleições ainda.
- Vá lá saber, mas não quero arrumar inimizade com um
amigo do vice-governador, pois vá que seja verdade sua e
eu acredito que seja, posso me dar mal depois. E ai,
mando trazer seu carro para cá?
- Pode mandar sim doutor. A chave ficou
lá com eles.
- Tudo bem! A pizza também já está chegando e nada do
escrivão e o meu substituto chegarem e não sei preencher
BO´s. Que merda.
A pizza chegou. O meu carro chegou e nada do meu cunhado
e do escrivão e o outro delegado chegarem. Comemos a
pizza e o delegado emburrado por causa do BO que ele não
sabia preencher.
- Quer que eu preencha o BO para o senhor?
- E você sabe preencher isso?
- Oras! Deve ser só colocar os dados não é?
- Isso mesmo, mas o que me barra é configurar a
impressora.
- Fácil isso. Quer que eu faça?
- Você quer preencher um BO
contra você mesmo?
- Eu não estou preso?
- Sim! Está, mas daí a você preencher o seu próprio BO
já é demais.
- Quer que eu preencha? Eu coloco meus dados, ajusto a
impressora e o senhor me dita sobre a minha acusação.
- Cara! Se não tivesse o flagrante eu
iria te deixar ir embora livre.
- Sei que não pode me liberar por que tem suas
responsabilidades, portanto o que é que eu posso fazer?
- Bem! Vamos lá. Você ajusta tudo e eu
dito para você do que te acusam.
Com o delegado ao meu lado ajustei a impressora e
preenchi o documento e cometi um erro terrível. Onde
mencionava grau de instrução coloquei ¨superior
completo¨. Aquilo em prisões era quase o mesmo que ser
um pedófilo, pois os presos odiavam os que chamavam de
engravatados.
Pizza comida, BO preenchido, carro entregue, meu cunhado
chegou com minha irmã chorando e nada do delegado
substituto e o escrivão chegarem.
- O que você aprontou?
Perguntou minha irmã chorando.
- Pior que não fiz nada.
- Se não fez nada, porque te prenderam?
- Pior que também não sei.
- Doutor! Não dá para relaxar a prisão
dele? Pagamento de fiança, quem sabe.
Perguntou meu cunhado.
- Infelizmente não dá mais, mas porque não fala com um
advogado daqui e veja com ele o que se pode fazer?
- O senhor conhece algum bom?
- O caso de é simples. Ele é primário e isso dá para se
responder em liberdade e ademais tem um cata pulga ai
fora que pode ajudar.
- Cata pulga?
Perguntei.
- É! Daqueles que ficam nas portas das cadeias esperando
chegar algum preso.
- Ah ta! Entendi e tem algum por ai?
- Espere que vou olhar.
Saiu e voltou pouco depois trazendo uma pessoa com ele.
Era um advogado da cidade.
- Este é o doutor Flávio. Ele é um
advogado criminalista aqui da cidade e podem conversar
com ele.
Disse o delegado.
Começamos a conversar com aquele advogado, porém ele não
me mostrou segurança. Parecia ser fraco demais, porém, a
minha situação não era coisa para ficar muito tempo
preso. Eu era primário e a acusação era pífia. Não havia
o porquê me manter preso por mais que um final de semana
e como o próprio delegado dissera, até um estudante de
primeiro ano na faculdade resolveria meu problema.
Combinamos tudo com o advogado e ele ma garantiu que no
máximo terça, ou na pior das hipóteses na quarta feira
seguinte eu estaria na rua, ou seja, na pior de todas as
hipóteses eu permaneceria preso por no máximo cinco
dias.
Nem bem tínhamos acabado de falar com o advogado e tanto
o escrivão quanto o delegado que iria substituir o
doutor Roberto. Este se despediu de mim, entregou meus
pertences e a chave do meu carro para meu cunhado,
verificou se estava tudo em ordem comigo e foi-se
embora.
Meu cunhado, o irmão dele que o acompanhara e minha irmã
voltaram para São Paulo, o doutor Roberto, mesmo
atrasado foi para a festa de aniversário e eu depois de
vinte minutos fui conduzido para o cadeião da cidade,
mas desta vez o delegado havia ordenado que quem fosse
me levar para lá me algemasse com as mãos para a frente
e não apertassem demais.
Desta vez, mesmo estando preso e indo para uma cadeia
pública a qual eu mal sabia o que haveria de encontrar
por lá, o caminho foi curto e as algemas não prenderam
tanto quanto da primeira vez. Chegamos, os dois
policiais abriram a porta traseira da viatura e
levaram-me para dentro daquelas instalações que já fora
no passado uma penitenciária feminina.
A construção de fato era muito antiga. Parecia que as
paredes daquele prédio poderia se desmanchar de um
momento para o outro. Entramos e fui conduzido a um
pequeno cubículo. Ali fui deixado e um carcereiro veio
falar comigo.
- Já foi preso alguma vez?
- Não senhor! Nunca.
- Aqui em sua ficha diz que tem nível superior. Quer
ficar nos seguro?
- O que seria ficar no seguro?
- Bem! Você ficaria separado da população da cadeia e
sema acesso ao sol e ficará lá mofando até ir para a
penitenciária.
- Até quarta feira estarei na rua senhor.
- Ah ta! Só porque você quer.
- Meu advogado garantiu isso.
- Qual é o nome dele?
- Doutor Flávio.
- Flávio Santos?
- Este mesmo.
- Não quero ser agourento, mas este advogado porta de
cadeia não vai lhe tirar daqui, se tirar antes de um
mês.
- Como senhor?
- Ele adora fazer drama. É folgado. Não corre atrás das
coisas e só vai atrás quando começam a ficar no seu pé,
porque se não ficarem ele nem vai atrás de nada.
- Está brincando não é?
- Não! Você já pagou para ele?
- Combinamos de metade amanhã e a outra metade quando eu
sair.
- Ele vai te dar canseira, mas vamos lá. Você tem alguma
tatuagem?
- Não senhor.
- Tem alguma cicatriz?
- Também não senhor. Quer que eu tire a roupa para o
senhor olhar?
- Não! Estou cansado de ver homens pelados aqui. Não
quer mesmo ir para o seguro?
- Não senhor.
- Lá só tem um preso e raramente enche.
Já com a população a casa nos finais de semana fica
lotada e ai só pela hora da morte e pelo que vi você tem
nível superior e os presos não gostam de burgueses.
- Ainda assim prefiro ficar junto com os demais presos,
mas porque este outro preso está no seguro?
- É um pedófilo que foi preso após ter estuprado cinco
crianças.
- Por favor! Coloque-me logo junto com os outros presos,
porque senão eu mesmo dou uma surra neste canalha.
- Tudo bem! Se prefere assim, vou te
colocar lá junto com eles.
As portas de grade foram abertas uma e depois outra e
acabei passando pela cela que era considerada do seguro.
Lá dentro, no fundo da cela estava uma pessoa que não
consegui distinguir bem quem ou como era, pois estava
bem no fundo da cela escura, mas só de imaginar alguém
fazendo mal para crianças me deu vontade de esganá-lo.
Portas se abriram e fecharam atrás de mim e de repente
eu estava em um amplo pátio com celas dos dois lados.
Aquilo ali fedia a sujeira. As paredes pelo que pude
constatar estavam mesmo parecendo que iriam desmoronar.
Fui conduzido a uma das celas que contava com oito
presos dentro dela. As demais estavam todas vazias.
O carcereiro abriu a porta e disse para os demais presos
que parecia que aquela noite a cadeia iria encher. Disse
isso sorrindo, mandou que eu entrasse e depois de
trancar a porta de grades saiu para ir embora.
Entrei. Estava assustado, pois nunca em minha vida
poderia me imaginar sendo trancado dentro de uma prisão
e ainda mais rodeado de bandidos, mas tinha que conter
meu medo. Não podia fraquejar.
- Entre e arrume um canto para dormir.
Disse um dos presos.
- Você foi preso por qual artigo?
Perguntou outro.
- Aqui você está entre amigos. Fique
tranqüilo.
Disse outro.
Cumprimentei a todos e querendo parecer corajoso em uma
situação daquelas disse que tinha sido preso por
documentos falsos.
- Um estelionatário. Raridade nesta cadeia. Entrou no
artigo 171 é?
Nem tinha idéia de que era isso, mas fazendo de conta
que entendia concordei. Indicaram-me um canto para eu me
ajeitar. A cela estava forrada de espumas velhas que
eram usadas de colchão. Alguns presos devem ter arrumado
lençóis e haviam forrado aquilo tudo. Uma degradação
total da sociedade humana, mas me ajeitei no canto e ali
fiquei sendo bombardeado por perguntas.
Apesar do pânico e do medo de morrer tentei manter a
calma e fui Levando a conversa em torno do nada com
coisa alguma. Notei que um daqueles presos não tirava os
olhos de mim e isso estava me incomodando. Era ainda um
garoto. Não deveria ter mais do que vinte anos de idade,
mas já estava no crime.
- Sou Tisiu e já deve ter ouvido falar de mim. Sou
conhecido como o vampiro de Campinas.
- Tudo bem, mas não ouvi não. Sou da capital e me
desculpe por não ter visto isso por lá.
- Tá me tirando! Sou famoso e adoro beber
o sangue das minhas vítimas.
Eu estava apavorado. Ele era um garoto, mas sua forma de
falar me deixou com uma sensação horrorosa e sempre tive
orgulho de ser considerado um homem macho, mas isso no
meu mundo e não naquele mundo para mim desconhecido.
- Eu costumo matar minhas vítimas
enfiando uma faca no coração delas. Giro do lado
contrário e depois que as mato, pego um copo, coloco o
sangue ainda quente delas no copo e bebo para comemorar.
Continuou falando aquele jovem.
Meu corpo se arrepiou todo. A forma de falar e o sangue
frio com que dizia aquelas palavras, me fez
arrepender-me de não ter ficado no seguro. Seria melhor
encarar aquele pedófilo, com risco de eu esganá-lo, do
que ficar diante daquele marginalzinho, mas agora era
tarde para voltar atrás. Preferi me encostar ao canto da
parede fria e fingir que dormia.
Não soube precisar que horas seriam, mas ouvi um dos
presos, outro garoto pedir para o guarda comprar pizza
para eles. Achei que estava sonhando, mas mantendo os
olhos fechados prestei atenção na conversa.
- Manda trazer duas pizzas de calabresa para nós seu
guarda.
- Duas não! Vou pedir quatro e você para
pelas quatro.
Respondeu o guarda.
- Tudo bem! Manda vir também oito latas de cerveja.
- Oito não! Vou pedir vinte e você paga por elas?
- Pode mandar vir que tenho dinheiro aqui comigo.
- Olha lá! Se trouxerem e não pagar o pau vai comer.
- Pode pedir que eu pago.
- Então espera que já vou pedir.
Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Os presos
pediam coisas da rua e o guarda cobrava esquema para
mandar trazer e não demorou nada e chegaram as pizzas e
as cervejas. Continuei fingindo que estava dormindo e
assim permaneci depois que eles comeram e beberam dentro
da cela o pedido pelas mãos do próprio guarda que estava
ali para mantê-los presos e sem direito a nada.
Comeram, beberam e todos se deitaram para dormir.
Permaneci da forma que estava. Fingia dormir e de
repente pareceu-me ter ouvido a voz de duas mulheres no
pátio.
- Impossível isso. Aqui é uma cadeia de
homens e não pode ter mulher aqui dentro.
Pensei.
Não era sonho. Havia mesmo ali no pátio duas mulheres e
uma delas era mãe do garoto que pedira a pizza. Ela
viera até a cadeia de madrugada a fim de trazer droga
para ele. As luzes já estavam apagadas dentro da cela e
entreabri um dos olhos para ver o que eu não acreditava.
Ali, do lado de fora das grades da cela havia duas
mulheres. Novas ainda e uma com certeza era a mãe do
garoto. A outra deveria ser sua irmã.
- Filho! Estou tentando te manter aqui enquanto ficar
preso, pois aqui posso lhe trazer dinheiro e droga. A
única coisa desagradável é que tenho que trazer maconha
e cocaína também para o carcereiro.
- É o preço da mordomia mãe.
- Tudo bem, mas saiba que vou tentar te manter nesta
cadeia e não deixá-lo ir para o CDP, porque lá não dará
para fazer o que faço aqui.
- Tenta lá com o gravata mãe. Sei que sai
com ele e exija que ele me mantenha aqui.
Não tinha entendido bem o que era o tal de gravata, mas
depois de um tempo fiquei sabendo que este era o nome
que eles davam para os juízes.
A mãe dele concordou e ainda com a maior falta de
caráter daquela mulher que lhe disse...
- Na hora de abrir as pernas e chupar ele, sou eu que
faço e isso apenas para que você não se foda mais do que
quer se foder.
- Mãe! Fala sério! Você adora trepar e
não é sacrifício nenhum para você dar para ele.
Era o cúmulo do absurdo e eu não conseguia acreditar que
aquilo pudesse ocorrer dentro das muralhas das cadeias
do país. Resolvi forçar e tentar dormir e com muito
custo acabei pegando no sono. Acordei com a barulheira
na cela com todos acordados querendo recolher as espumas
que serviam de colchão.
Levantei-me ainda zonzo e demorou a que eu me conformar
que estava preso, mas enfim, aquilo era a minha
realidade no momento. Olhei dos lados e vi que o Tisiu
não estava ali dentro da cela. Olhei para fora e ele
estava no pátio preparando para servirem o café da
manhã.
- Oh novato! O Tisiu é o faxina daqui.
Disse-me um dos presos.
- Tudo bem.
Respondi e fiquei calado.
Pouco tempo depois o café foi servido e depois abriram a
porta para que fossemos para o pátio tomar sol e
caminhar um pouco. Sai e fui me sentar a um canto. Lá
permaneci por algum tempo calado. Quieto, até que Tisiu
se aproximou de mim e já veio me ameaçando.
- Então você é burguês né?
- Sou o que?
- Cara estudado. Nível superior. Você está no lugar
errado. Nóis é do gueto e se não pedir ir pro seguro eu
vou te furar até você sangrar e depois vou tomar os eu
sangue.
Aquelas palavras proferidas em tom de ameaça me deixaram
apavorado. Se fosse em uma situação normal eu pegaria
aquele moleque e lhe daria uma surra, mas isso em meu
mundo e eu não estava mais no meu e sim no mundo dele.
Tremi e ele sentiu prazer em me ver assustado.
- Vou te mostrar uma coisa e será com ela que vou dar
cabo da sua vida seu merda.
Saiu e voltou pouco depois com uma barra de ferro
transformada em um tipo de faca. Abanou-a mostrando-a
para mim e meu sangue gelou nas veias. Eu cometera um
erro na hora de preencher o BO e com certeza o
carcereiro contara para aquele marginal o meu grau de
instrução. Eu não sabia o que fazer, mas no pouco de
coragem que me restara aproximei-me da grade de
separação com o pátio e chamei o guarda.
- Senhor! Será que poderia me trocar de cela para eu
dormir de noite?
- Primeiro vamos encher aquela e depois vou abrir
outras, mas porque quer sair daquela lá?
- Não me sinto bem lá senhor.
- Está com medo do Tisiu?
- Não é bem isso, mas gostaria de poder trocar de cela.
- Não faz diferença nenhuma você trocar de cela de
noite, porque se ele quiser te pegar ele te pega de dia
mesmo no pátio ou na hora de tomar banho.
- O senhor pode me trocar de cela?
- Posso, mas nas outras não tem colchão e nada mais que
as burras frias de pedra.
- Não tem problema senhor. Prefiro dormir na pedra
- Tudo bem, mas você goza do privilégio do seguro. Quer
ir para lá?
- O que pode acontecer lá?
- Bem! Além de estar dormindo do lado de um pedófilo
assassino perigoso, se a cadeia virar lá é o primeiro
lugar que os presos vão a fim de matar os que ficam no
seguro.
- Prefiro me arriscar ficando em outra cela senhor.
- Tudo bem. Quando eu fechar as celas te coloco na
outra.
- Obrigado senhor.
- Não me agradeça, pois se o Tisiu te jurou de morte
pode começar a rezar porque ele não perdoa ninguém.
- E vocês não fazem nada para conter isso?
- Eu! Nunca iria me meter com ele.
- Tudo bem. Obrigado por me trocar de
cela.
A manhã passou e procurei ficar a maior parte do tempo
próximo da grade que separava o pátio do carcereiro e
não porque isso mudaria algo, mas senti-me mais seguro
ali. De longe Tisiu só me olhava, mostrava aquela adaga
feita de barra de construção ria.
Chegou a hora do almoço e foram servidas as marmitas de
alumínio e não havia colheres e nem garfos. Peguei a
minha e sentei-me longe dos outros. Fiquei olhando como
eles faziam para comer.
Vi que eles tiravam a tampa também de papel alumínio e
faziam dela um tipo de colher. Procurei fazer igual e
mesmo desajeitado comi aquela comida horrível e fiquei
pensando no que as pessoas falavam fora das muralhas que
a comida dos presos era de carne todos os dias e a
comida excepcional. Na verdade a comida era um lixo.
A tarde chegou e Tisiu fez quentão de me ameaçar durante
todo o dia. O carcereiro veio e colocou-me em uma cela
sozinho. Levou os demais para a outra cela e no caminho
Tisiu parou diante da grade da minha cela e disse...
- Reze bem esta noite porque amanhã eu vou te furar e
tomar o seu sangue.
Era impossível não ficar assustado. Eu não pertencia
aquele mundo e do nada aquele moleque me ameaçava e não
duvidava que ele cumprisse o que prometera. Pelo que
ouvi ali dentro, nas conversas era que ele estava sendo
acusado de dezoito assassinatos e todos da mesma forma.
Matava com uma faca e tomava o sangue das vítimas.
Trancado eu olhei para aquela cela e vi que o carcereiro
falara a verdade. Ali só havia as camas de pedra, que
eles chamavam de burra e nem sei por que deste nome. O
tempo de repente ficou carregado e começou a chover.
A chuva foi engroçando e de repente virou uma
tempestade. A temperatura caíra demais e do nada começou
a verter água por algumas frestas na parede. O pátio
começou a encher de água e alguns ratos enormes saíram
pelas saídas de água do mesmo.
Chovia demais e não dava para ficar imune ao medo e ao
pavor. As partes de cima daquelas camas de pedra estavam
alagadas, devido à água que saía pelas paredes. Preferi,
por falta de opção ficar na debaixo, mas aquelas
ratazanas enormes resolveram fazer a minha noite ficar
ainda mais aterrorizante. Aproximaram-se de onde eu
estava e sentadas sobras pernas traseiras, ficaram como
se estivessem em pé prontas para me atacar.
Entre me encharcar e enfrentar aquelas enormes ratazanas
resolvi passar para a parte de cima e elas acabaram indo
embora e eu fiquei ali molhado. Ensopado e não tinha
onde me encostar, pois tudo estava molhado. O frio era
congelante e de repente a chuva passou. Tentei
adormecer, mas era impossível conseguir fazer isso. O
medo, a umidade e o frio não me deixavam dormir e de
repente começaram a chegar mais presos e alguns deles
foram colocados na cela onde eu estava e dentre estes
estava um negro forte feito um touro.
Ele não se conformava por estar preso. Começou a
balançar as grades da cela e parecia que ele ia
conseguir arrancá-las do lugar. Todos olhavam para ele e
riam da cara dele e resolvi me aproximar.
- Calma meu amigo. Tenha calma.
- Como vou ter calma. Fui preso
injustamente e tem um cara La fora que vai acabar
comendo a minha mulher.
- Você ficando nervoso não vai mudar em nada a sua
situação. Calma.
Eu não estava n um pouco calmo, mas resolvi tentar
acalmá-lo a fim de quem sabe eu também pudesse me
acalmar e parece que surtiu efeito, pois aos poucos
aquele rapaz foi se acalmando.
- Obrigado! Você me ajudou para que eu me acalmasse, mas
tenho que sair daqui logo porque senão o cara vai comer
minha mulher.
- Calma meu amigo. Para tudo na vida tem solução. Qual é
o seu nome?
- Meu nome é Cidão e o seu?
- O meu é Marcos, mas tenha calma.
- Vou tentar.
- Você já foi preso antes?
- Não! Nunca e foi tudo uma armação e você está preso
por quê?
- Nem eu sei, mas me acusaram de tentar fazer documento
falso.
- Poupa Tempo de Campinas?
- Sim! Por quê?
- Você não é o primeiro que eles fazem isso.
- A toa? Do nada?
- É! Eles adoram fazer isso.
- Porque te prenderam?
- Eu trabalho na construção civil. Sou ajudante de
obras. Cheguei a minha casa a tarde e minha mulher
estava assustada e perguntei o que tinha acontecido e
com muito custo ela me contou que o Zé da venda passou
uma cantada nela e convidou-a para trepar, para que ela
desse pra ele.
- E o que você fez?
- Bem! O Zé me conhece desde pequeno e sabe que eu não
sou de confusão, mas por eu ser negro e ter irmãos
errados ele quis abusar da minha bondade.
- Você matou ele?
- Não! Eu jamais faria isso, mas fiquei fora de mim.
Tomei dois goles de pinga e não posso beber porque perco
a visão das coisas. Sai de meu barraco e fui até a venda
dele e ele disse na minha cara que o melhor que poderia
acontecer com minha mulher era se desse para ele e se
afastasse de mim.
- E o que você fez?
- Eu queria arrebentar ele, mas não sei fazer isso e daí
me abaixei, peguei o balcão de bebidas por baixo e virei
ele de ponta cabeça.
- Você fala daqueles balcões de aço que são geladeiras?
- Deste mesmo.
- Caramba! E depois?
- Ai sai da venda dele, mas acabei pegando um litro de
conhaque e estava na rua quando a guarda municipal
passou e me prendeu.
- Nem sei o que te falar. Que coisa meu amigo.
- O pior de tudo é que eu era o único de meus seis
irmãos que nunca fui preso ou se meteu com a polícia e
agora vou acabar pagando o preço por ser irmão deles.
- Calma que não são bem assim as coisas.
- Você que pensa. Eu sou de Vinhedo e lá
para a justiça só existem dois tipos de pessoas na
cidade. Os pobres e os ricos e eu por ser pobre, preto e
irmão de seis presos não vão dar mole para mim.
- Tenha calma que tudo irá se resolver. Olha! Eu tenho
advogado e no máximo até quarta feira estarei na rua e
daí, saindo eu te ajudo a sair daqui.
- Jura?
- Pode apostar que sim, pois sei bem o que é ser
injustiçado.
- Nem saberei como lhe agradecer por isso.
- Só fica calmo, porque senão acaba se complicando mais
ainda aqui dentro.
- Tudo bem. Você já está me ajudando muito e saiba que
pode contar com a minha proteção aqui dentro agora.
Ninguém vai por as mãos em você. Tem a minha palavra.
Eu não estava tentando acalmá-lo por causa disso, mas
pareceu-me que Deus o colocara ali para me proteger e
olhando através das grades para o céu completamente
nublado agradecia a Ele por isso. Sentamos em um canto
daquelas camas molhadas e tentamos dormir, mas quando eu
estava quase pegando no sono ouvi barulho de sirenes e
de vozes exaltadas.
- O que será que está acontecendo lá
fora?
Pensei eu.
Não demorou muito e tive minha resposta. Pela grade de
divisão da carceragem para o pátio passaram varias
pessoas conduzidas por policiais federais. Trouxera
diretamente para a cela e que eu estava. Aqueles cinco
presos entraram e só disseram boa noite e se calaram e
assim permaneceram. O cansaço me vendeu e acabei
dormindo.
Por mais incrível que pudesse imaginar, naquele lugar
onde ninguém fazia nada o dia todo e nem havia opções de
trabalho, ou até mesmo de estudo por ser uma cadeia de
transição todos acordavam cedo e mal o dia clareou já
havia aquele barulhão lá no pátio.
Tisiu acordava e fazia questão de acordar todo mundo e
eu sabia que ele me ameaçaria assim que me visse, porém,
naquele segundo dia ali eu já não o temia, pois
acreditava e estava confiando naquele anjo negro e de
fato aquele dia não foi um dia normal. Muita coisa
aconteceria no decorrer das horas que ainda viriam.
Eram sete horas da manhã quando Tisiu trouxe o café, uma
quota de leite que mal dava meio copo e um pãozinho
amanhecido aparência de ser de dois dias atrás. De
repente ele olhou para mim e em seu olhar havia um
brilho assassino. Sabia que se eu não tivesse proteção
não chegaria até o final do dia vivo.
Tomamos café e eu não tinha um pingo de vontade de sair
da cela, porém, ficar ali dentro seria ainda mais
perigoso, pois as portas ficavam abertas durante o dia,
enfim, eu teria que sair, mas desta vez não sai sozinho.
Cidão, já mais calmo, saiu junto comigo conversando.
Tisiu olhou para ele, depois olhou para mim e passou o
dedo pelo pescoço em uma clara ameaça de querer me
cortar.
Não sei por que, mas aquilo não me pareceu naquele
momento tão perigoso. Eu acreditava e confiava demais em
Deus e sabia que Ele não me desampararia e para me
proteger havia mandado um de seus anjos para tal missão.
Era um dia de domingo. Era o meu segundo dia recolhido
por trás daquelas grades. Eu estava quebrado pela noite
mal dormida. Tinha necessidade de tomar um banho e banho
ali só de água gelada, impressionantemente gelada e não
tinha jeito. Eu precisava colocar a roupa que usava para
secar e para tanto teria que lavá-la e eu não tinha
sabão e nem nada.
- Quer uma pedra de sabão para lavar
estas roupas molhadas?
Perguntou o guarda.
- Se o senhor me arrumar eu ficaria muito
agradecido.
Respondi.
- Um momento que vou pegar.
- Obrigado!
- Olha só gente. O bacana é todo
educadinho, mas isso vai acabar quando eu o catar de
jeito.
Disse Tisiu caçoando de mim. Todos riram.
O guarda voltou em pouco tempo e entregou-me um pequeno
pedaço de uma pedra de sabão. Já poderia lavar a minha
roupa, mas havia dois problemas. Primeiro que para fazer
isso eu teria que entrar em uma das celas que era
ativada apenas para que os presos tomassem banho e
depois é que eu não tinha outra troca de roupa e ou
ficaria nu enquanto a minha roupa secasse, ou eu lavaria
a minha cueca e a vestiria molhada mesmo enquanto a
roupa secasse ao sol que dera a sua cara.
Não havia jeito e eu entrei naquela cela imunda a fim de
lavar minhas roupas. Olhei para os lados e vi que Tisiu
estava lá perto dos presos que haviam chegado de
madrugada. Cidão por outro lado estava sentado no fundo
do pátio quieto e pensativo.
- Seja o que Deus quiser. Tenho que lavar
estas roupas senão irei ficar doente.
Pensei.
Temeroso eu entrei naquela cela e aparentemente Tisiu
não me viu entrar. Tirei toda a roupa e lavei minha
cueca e mesmo molhada eu a vesti novamente.
Comecei a lavar a roupa e de repente barulho na porta da
cela. Era Tisiu acompanhado de mais dois presos amigos
dele. Tremi. Meu fim finalmente chegara.
- Agora é com nóis mano. Vou te furar todo e depois
beber seu sangue.
Disse isso com tanta frieza que meu corpo gelou junto
com suas palavras e mais assustado fiquei quando ele
mostrou aquela adaga em uma mão e na outra trazia uma
caneca com as quais eles serviam leite para os presos
ali.
Tisiu se aproximou de mim e mandou que o outro preso me
segurasse e se fosse em outra ocasião, em meu mundo, eu
teria dado uma surra naqueles dois, mas eu não estava em
meu mundo e sim no dele e não via salvação ali. Ele
então olhou para a minha cara com ar de deboche e
disse...
- Hoje é domingo e não costumo matar de domingo e por
isso vou deixar você viver mais um dia.
Eu não sabia se chorava, não sabia se agradecia a ele,
ou se erguia as mãos para o céu e agradecia a Deus, mas
o importante era que eu ainda não iria morrer naquele
dia, porém, o comparsa dele se aproximou de mim e
segurou-me com os braços para trás. Seria fácil me
livrar daquele aperto, mas Tisiu não me deu tempo para
qualquer reação e aproximando-se me deu dois socos no
peito.
Saiu logo em seguida e na porta virou-se e disse que me
daria mais aquele dia para que eu rezasse, mas no dia
seguinte, na segunda, ele me mandaria para o inferno e
que tomaria meu sangue, porque o corpo dele pedia por
isso.
As palavras dele doeram mais em mim do que aqueles dois
socos idiotas que para mim pareceu menor que o pouso de
uma mosca sobre meu braço. Ele era fraco, mas perigoso e
eu tinha que tomar cuidado para não vacilar de novo.
Lavei minha roupa e ia saindo da cela quando um daqueles
cinco que chegaram de madrugada olhou para mim e
disse...
- Dá para se notar que este mundo não é o seu e vou te
dar um aviso. Cuidado porque neste mundo sujo e podre
das prisões, ratos iguais este moleque, que nada tem
mais a perder, é que acabam ditando a rotina do dia a
dia.
Sai da cela com aquelas palavras na cabeça e apenas de
cueca fui para o pátio esticar minhas roupas. Depois
disso vendo que Cidão permanecia no mesmo lugar de
cabeça baixo fui até ele para distrair minha cabeça.
- Como você está meu amigo?
-Triste, chateado, bravo, irritado e preocupado.
- Calma! Tudo vai dar certo. Tenha fé em Deus.
- Fé? Estou preso e minha mulher lá fora desamparada e
um cara querendo comê-la. Acha que dá para ficar calmo?
- Me diga uma coisa. Por acaso você acha que se ficar
triste, chateado, bravo, irritado e preocupado, eles te
deixarão ir embora?
- Claro que não. Porque diz isso?
- Digo por que você deve se acalmar.
Ficando deste jeito não vai mudar nada e o que vai
acontecer é de você ficar ainda mais machucado.
As minhas palavras pareceram surtir um efeito momentâneo
em Cidão que tentando parar de pensar naquilo tudo
começou a conversar comigo um pouco mais solto.
Contou-me que eram sete irmãos e que outros todos
estavam presos e todos nas penitenciárias de Hortolândia
e todos haviam entrado para uma facção que havia sido
criada de nome PCC.
Eu não entendia nada do mundo do crime e a curiosidade
levou-me a querer saber mais daquele mundo de prisão e
apesar de Cidão também não ser daquele mundo, possuía em
sua família os irmãos que preferiram entrar para o mundo
do crime enquanto apenas ele quis trabalhar dignamente.
Disse que conhecera Vera a cinco anos atrás e que ela
era um pouco mais velha que ele.
Disse também que ela era uma moça loira e maravilhosa,
que se entregara a um amor de verdade com ele, deixando
tudo de lado apenas para ser feliz ao seu lado, mas ele
era pobre e preferia isso a entrar para o crime onde o
dinheiro poderia vir em abundância, mas o preço para
isso seria caro demais para ele e a cada dez palavras
que ele falava, cinco era sobre Vera.
Querendo mudar os rumos da conversa perguntei sobre seus
irmãos e sobre aquilo que ele falara sobre PCC, mas ele
sobre este assunto não sabia muito, apenas sabia o que
soubera de seus irmãos quando saíam naquelas tais de
saidinhas de dias da mães, natal, dia dos pais e por ai
afora.
Falei para ele que dentro de no máximo três dias estaria
na rua e o ajudaria a sair dali e isso lhe encheu de
esperanças, pois saindo ele voltaria para casa e teria
novamente em seus braços a sua amada esposa Vera.
Minha roupa secou, vesti-a e chegou a hora do almoço.
Naquele dia serviram macarrão que mais parecia uma gosma
de sabe-se lá o que, mas enfim, era o que tinha para se
comer. A tarde quando se iam trancar as portas Tisiu se
aproximou da porta da cela onde eu estava e disse...
- Amanhã será o seu dia. Se prepare.
Afastou-se da porta, o carcereiro a trancou e ele foi
embora. Cidão olhou para mim e perguntou se aquele
moleque estava me incomodando. Respondi que ele apenas
não havia gostado de mim.
- Aquele moleque é perigoso. Isso está
escrito em seus olhos. Tome cuidado com ele, pois parece
que ele dita as normas aqui dentro desta cadeia. Se
precisar de ajuda pode contar conosco.
Disse um daqueles presos recém chegados.
- Ninguém vai mexer com você, porque se
fizerem isso, vão ter que se ver comigo antes.
Disse Cidão em seguida.
Mesmo praticamente dormindo no chão, naquela noite
consegui dormir, pois senti que já não estava mais só.
Amanheceu. Terceiro dia preso. Era uma segunda feira.
Tudo seguiu sua rotina. Primeiro soltaram o Tisiu e este
foi pegar o café para servir a todos os presos. Ele
começava sempre da última cela para a primeira e já
havia quatro celas cheias de presos e todas as que
estavam ocupadas ficavam do lado esquerdo de quem
entravam no pátio. Eu estava na primeira.
Tisiu serviu as demais e veio até onde eu estava
trancado. Preferi ficar longe da grade, mas mesmo assim
ele me olhou e disse em tom ameaçador...
- Rezou bastante? Se não rezou reze, porque hoje eu vou
tomar seu sangue depois de te matar.
- Moleque! Antes de pegar ele vai ter que
me pegar primeiro.
Disse Cidão em tom enérgico.
- Calma ai negão! Não tenho nada contra você. Meu
negócio é com o mano aqui.
- Já lhe disse que se mexer mais com ele ai irá se ver
comigo.
- Não quero confusão com você negão. Sei bem quem são
seus irmãos e já lhe disse que meu negócio é com este
branquelo ai.
- Se mexer com qualquer um dos dois não
será com os irmãos dele que terá que se preocupar,
porque nós mesmos cuidaremos de você, seu pirralho.
Disse o que parecia ser o líder daqueles cinco presos.
- Pelo que vejo você arrumou protetores
não é, mas tudo bem, eu vou me conter, porém, um dia eu
te pego lá fora.
Disse isso e se afastou depois de servir o café, leite e
o pão.
- Este não vai por mais a cara com você
nem aqui e nem lá fora, porque ele sabe que encontrará
encrenca se pensar em fazer isso algum dia e eu duvido
que ele saia daqui vivo. É idiota demais para ficar vivo
muito tempo.
Disse outro dos presos.
Tisiu saiu e algo chamou a sua atenção e ele voltou os
olhos em direção às grades. Ali, no alto da parede, na
parte interna das grades havia uma TV e estava ligada no
jornal da manhã e Tisiu pediu para que todos olhassem
para a tela. Nela a apresentadora transmitia uma matéria
sobre uma prisão ocorrida na noite anterior...
- A polícia federal em uma operação da inteligência,
prendeu na noite de ontem uma quadrilha de traficantes
na cidade de Jundiaí e com eles foram apreendidas
oitenta quilos de pasta de cocaína.
Aquilo era em gênero de apreensão uma grande quantidade,
pois a pasta de cocaína era pura e se misturada dariam
muitos quilos, mas o que chamava a atenção é que a
reportagem mostrava a imagem da quadrilha sendo presa e
eram justamente os cinco que chegaram de madrugada na
cadeia.
Como por um passe de mágica se esqueceram de mim. O
assunto agora era sobre a prisão das drogas e dos
traficantes e ali estavam eles junto comigo e com Tisiu.
Este olhou para mim e depois para eles e se assustou,
porque prometeram me proteger e se tem uma coisa que
descobri naquele momento é que todo bandido é macho,
desde que não surjam na sua frente bandidos mais
perigosos que ele e aquela quadrilha não era qualquer
coisa, pois foram presos pela polícia federal e não pela
civil ou a militar e isso impunha respeito entre eles.
A segunda feira transcorreu com o assunto sobre a grande
apreensão de drogas através da polícia federal, mas mais
ainda por serem aqueles cinco os pivôs da prisão. A
corregedoria tinha pressa em tirar aqueles cinco do
cadeião e no final da tarde chegou a ordem de
transferência deles para o complexo penitenciário de
Hortolândia e eram dezoito horas quando um forte esquema
de segurança foi montado e eles foram transferidos sob a
escolta da federal.
Tisiu sentiu-se mais confiante e na hora que foi servir
o jantar, naquele dia um pouco mais tarde me deu o
aviso...
- Seus protetores foram embora. Comece a rezar de novo
passarinho.
- Se mexer com ele vai se ver comigo
moleque. Eu ainda estou aqui.
Disse Cidão energicamente.
- Não se mete não negão! Meu negócio é com ele e não com
você.
- Tente ao menos chegar perto dele para ver se não te
faço atravessar a parede sem desejar.
- Tudo bem negão. Tudo bem! Mas está se metendo com a
pessoa errada.
- Quer por a prova a sua macheza?
Respondeu Cidão.
- Deixe quieto. Fica na paz.
Disse Tisiu e saiu em direção à sua cela.
Ele se foi, mas a preocupação voltou. Cidão não era
páreo para Tisiu e os aliados dele, porém o que pesava
ai, nesta situação era que ele tinha irmãos ligados
diretamente ao crime e pertenciam a recém criada facção
do PCC e isso continha um pouco aquele moleque
delinqüente.
A noite passou e mal consegui dormir. Pelos cálculos do
advogado no máximo até no dia seguinte eu estaria na rua
e eu contava com aquilo. A rotina voltou e fomos para o
pátio. Tisiu não mexeu mais comigo durante toda a manhã,
mas logo após o almoço minha aflição cresceu, pois viera
a ordem de transferência de Cidão para o complexo
penitenciário ainda naquela tarde e a minha para o dia
seguinte.
Sabendo disso Tisiu se aproximou e todo confiante
olhando-me nos olhos disse...
- O negão vai embora hoje e amanhã cedo eu te pego.
Garanto que não terão gosto de ver como que é a
penitenciária por dentro.
- Vamos falar francamente Tisiu. Porque
se invocou comigo? Não te fiz nada cara.
Respondi procurando tirar coragem de dentro de mim.
- Não tenho nada contra você, mas eu não gosto de
burgueses e você é um deles.
- Cara! Eu sou um cara que rala para viver e nem de
longe sou um burguesinho.
- Você é estudado e eu não gosto de quem estuda.
- Bela porcaria eu ter estudado. Estou no mesmo lugar e
situação que você, ou seja, eu e você estamos presos o
que não faz diferença nenhuma.
- É! Pode até ser, mas vou te matar.
Disse isso e se afastou.
- O que foi irmão?
Perguntou-me Cidão se aproximando.
- As mesmas ameaças.
- Quer que eu dê um jeito nele antes de ir para a penita?
- Não! Você não é assassino. Comporte-se para eu poder
lhe ajudar. Amanhã deverei ir para a rua e lá eu te
ajudo.
- Tudo bem farei isso, mas se for para a penita lá na
P-1 está meu irmão Rubão, na P-2 está meu irmão Carlão,
na P-3 está meu irmão Armandão, na P-4 estão meus irmãos
Ricardão e Pedrão e na P-5 está meu irmão Clebão. Lá
eles são líderes e respeitados. Fale com eles e que é
meu amigo que eles te darão apoio.
- Obrigado meu amigo.
Mal acabou de me falar isso o carcereiro chamou-o e ele
foi embora. Tisiu olhou-me com olhar homicida e em um
aviso velado passou o dedo pelo pescoço em um sinal de
que iria cortá-lo. Novamente fiquei apavorado e rezei
para que eu fosse embora no dia seguinte.
A noite passou e eu não consegui dormir. Estava
apavorado. Na haveria jeito ou forma de escapar daquele
assassino. Eu não tinha para onde correr ou onde me
esconder. A policia não iria me proteger, pois para eles
éramos todos lixo e escória da sociedade. Só me restava
rezar e Tisiu sentiu meu pavor porque ria vendo-me
assustado.
A manhã passou e ele sequer olhou para mim. Sentia que
ele iria aprontar algo e deixara para mais tarde e por
outro lado eu contava que meu advogado viesse me tirar
dali. A tarde chegou e com ela nada do meu advogado,
porém chegou a ordem de transferência minha e de mais
dois presos para o Centro de Detenção Provisória e eu
não sabia o que era pior, se era as ameaças do Tisiu ou
eu ser transferido para o CDP, afinal lá, eu estaria
diante de pessoas tão ou mais perigosas que o Tisiu.
Eram quinze horas quando o carcereiro me chamou a aos
outros dois presos e mando que arrumássemos as coisas,
pois iríamos ser transferidos para o CDP. Apressei-me em
ficar ao lado das grades, perto do carcereiro e Tisiu só
me olhava à distância rindo e foi ali que eu soube e
senti que ele não tinha a menor idéia de me matar
fisicamente, mas sim queria minar minhas resistências
mentais e psicológicas. Odiei-o por isso.
Todos ali do lado do portão gradeado, o mesmo foi
aberto e fomos levados para uma caminhoneta fechada onde
o calor era insuportável. Entramos e logo em seguida a
viatura saiu em direção ao CDP. Dentro dela havia um
preso o qual já era veterano no ir e vir. Este nos deu
dicas de como deveríamos agir, uma vez que o outro que
estava indo era tão novato quanto eu.
- Ao chegar lá na penita não olhe de forma alguma nos
olhos dos guardas. Sempre mantenham as mãos para trás e
olhos para baixo. Só responda o que eles perguntarem
sempre frise o ¨senhor¨ ao responder.
- Por quê?
Perguntou o outro preso.
- Porque lá eles são a lei e adoram bater em presos.
- Mas bater nos outros é um crime.
Disse inocentemente.
- Ah ta! Vá dizer isso para eles então. Já lhes dei a
dica e nem cobrei por isso.
A viatura continuou seu caminho e algum tempo depois
chagava ao complexo penitenciário, o qual era composto
de cinco unidades e outra de semi-aberto.
A viatura parou em uma das unidades e o preso que havia
nos falado sobre como proceder dentro da prisão desceu.
Eu e o outro permanecemos ali dentro algemados e
sentados quietos. De repente ouvimos barulho de pancada
e gemidos.
- Ai! Ai! Ai! Para senhor.
- Te fiz uma pergunta e não quero conversa mole.
- Desculpe senhor.
Ouvimos o barulho de outras pancadas e gemidos.
- Vou perguntar de novo seu lixo. É a primeira vez por
aqui?
- Não senhor! Já passei por aqui outras vezes.
- Ah! É freguês antigo então?
- Sou sim senhor!
- Foi preso por qual artigo desta vez?
- 157 senhor!
- E das outras vezes?
- 155, 157 e 33 senhor.
- Depois quando falamos que temos que
matar vocês seus vermes vem uns padres de merda
defendê-los. Vocês são a escória e podridão da sociedade
e ainda temos que dar-lhes comida e pagar com nosso
dinheiro. Vá seu vagabundo. Para dentro.
Não entendi nada daquilo de 33, 155 e 157, mas entendi
sobre o respeito e a educação com os guardas. Olhei para
o outro preso e ele também entendeu bem o recado. A
porta foi fechada novamente e a viatura saiu. Fomos
levados para a unidade três do complexo.
Lá chegando à porta foi aberta e nos mandaram descer.
Desci primeiro. Mãos para trás e cabeça baixa. O guarda
mandou que parássemos de costas para a parede e assim
fizemos. Olhando para mim ele perguntou...
- Primeira vez por aqui?
- Sim senhor!
- Já foi preso alguma vez?
- Não senhor! Nunca.
- Foi preso por qual crime?
- Na verdade nem eu sei senhor!
- Hum! Educadinho o preso aqui heim Jairo?
- Muito e na ficha dele diz que tem nível superior.
- Ele foi preso por qual artigo?
- Não vem mencionado aqui. Apenas vem
escrito cuidado.
- Porque cuidado?
- Sei lá, mas isso vem do delegado, o doutor Roberto.
- Poderia me dizer por que aqui está escrito cuidado
preso?
- Também não sei senhor.
- Bem! Deixa para lá e você preso. Já nos visitou alguma
vez?
- Não senhor! Nunca.
- Ih! Outro educadinho. Foram presos juntos?
- Não senhor! Respondemos os dois quase que juntos.
- Vamos mandá-los logo para o RO e não
vamos perder tempo com eles.
Não entendia nada sobre aqueles nomes ou siglas, mas nos
levaram para um pequeno pátio e depois nos levaram por
uma escada lateral. Subimos e saímos em uma enorme
galeria. Havia nela duas passarelas com celas dos dois
nomes. No meio delas havia um vão gradeado que deixava
ver por ele a parte de baixo que deveriam ser celas
também. Ergui disfarçadamente os olhos e havia mais um
lance daqueles no andar superior.
Fomos conduzidos pelo corredor de celas sob o olhar
atento dos demais presos. Abriram uma das celas e ali
estavam mais dezoito presos. Era uma cela ampla e
possuíam camas de alvenaria dos dois lados. No fundo do
lado direito havia um lavatório e um vaso sanitário e no
esquerdo um cano por onde saia à água gelada. Também
havia um grande espaço gradeado que era a janela daquela
cela.
- Bem vindos!
Nos disseram os demais presos.
- Obrigado!
Respondi.
- Se ajeitem em algum canto ai. Aqui somos todos amigos
e irmãos.
Olhei de um lado e do outro. Todos estavam ajeitados e
sentados naquelas camas que possuíam um colchão de
espuma e todas estavam com lençóis.
- Foram presos por qual artigo?
Perguntou um dos presos.
- Eu na verdade nem sei por que fui preso e nem os
guardas nos informaram o artigo.
- Mas do que foi acusado?
Perguntou outro deles.
- Me acusaram lá no Poupa Tempo de querer tirar
documento falso.
- Poupa Tempo de Campinas?
- Este mesmo?
- E estava tirando documento falso?
- Não! Claro que não.
- Mais um que caiu no esquema do Estado. Disse um dos
presos para os outros.
- Como assim? Esquema do Estado?
- Quotas irmão. Quotas. Já ouviu falar delas?
- Mais ou menos.
- Pois é! Eles tem quotas para prender
pessoas e quando não acham apelam para o Poupa Tempo que
acaba arrumando alguns para eles.
- Mas isso é errado. É um crime.
- Bem vindo ao time irmão. Somos agora
todos criminosos.
Não sabia o que falar e de uma coisa eu sabia. Eu agora
era um prisioneiro e com um número de matrícula e mesmo
sendo inocente, esta matricula iria me perseguir para a
vida toda e o pior é que eu não poderia fazer nada para
mudar isso.
- Por favor. É fácil de falar com o Armandão?
- O negão?
- Deve ser! Conheci o irmão dele lá no cadeião de
Campinas e ele pediu para que eu falasse com o irmão
dele aqui.
- Nossa! Está bem na fita heim mano. Já
chega conhecendo um dos cabeças da cadeia,
mas qual dos irmãos dele está solto? Respondeu
rindo um dos presos.
- O Cidão!
- O que? O Cidão foi preso por quê? O mano não é do
crime.
- Pelo que ele me falou foi por causa de um cara de um
bar lá perto da casa dele.
- Puta que pariu! Aquele filho da puta de novo? Eu devia
ter dado cabo dele quando ele aprontou pra cima de mim.
- Como?
Perguntei curioso.
- Tem um cara lá em Vinhedo, que tem uma venda perto dos
nossos barracos que é cheio de querer comer a mulher dos
outros. Ele já devia ter subido e eu vacilei quando ele
mexeu com a minha, mas daí a fazer com que o Cidão fosse
preso já é demais. Passou da hora dele subir.
- Subir?
Perguntei.
- Você vive em que mundo mano? Subir é igual passar
desta vida para a outra. Morrer, ou ser morrido.
Entendeu?
- Sim! Entendi.
Respondi sem graça, pois todos riram.
- Fica frio. Sabemos que não é do crime.
Disse outro dos presos.
- Vamos chamar o Armandão para você. Ei Bidu chame o
Armandão para nós.
Passaram-se uns vinte minutos e diante da cela onde eu
me encontrava apareceu um rapaz negro muito forte. Na
verdade ele era até mais forte que seu irmão, porém duas
coisas os diferenciavam. Uma era que ele era bem mais
baixo que Cidão e a outra era a sua voz que era fina.
- Você que é amigo do meu irmão?
Ele me perguntou.
- Sim! Como sabe?
- Aqui na cadeia não há segredos. Avisaram a ele que
você veio para cá e ele me mandou uma pipa.
- Nossa! Tão rápido assim?
- Se tem uma coisa que funciona aqui são as nossas
mensagens irmão. Precisa de algo?
- Pelo que meu advogado falou devo receber a liberdade
ainda hoje, mas se não receber acho que vou precisar
sim.
- Vamos torcer para que vá embora, mas se não for e
precisar de algo é só me chamar. Você tem cobertor,
escova de dentes, sabonete, lençol?
- Não tenho nada. Estou do jeito que vim da rua.
- Vou lhe trazer uma bermuda e uma camiseta assim você
pode lavar a roupa que está usando.
- Obrigado! Nem sei como agradecer.
- Nem precisa! Amigo de meu irmão, meu amigo é.
- Esta bem na fita mesmo heim mano. Já chegou chagando e
deve ser mesmo amigo do Cidão, porque o Armandão não é
de ser calmo e bonzinho assim.
- Conheci o Cidão lá no cadeião e fizemos amizade por
lá.
- Parabéns! Hoje eu vi que o Armandão tem
coração ainda.
- Por quê? Ele não é assim?
- O Armandão ser desta forma que foi com você? Nunca.
Ele é seco e mal humorado.
- Dei sorte então?
- Sorte sim, mas não abusa dela se for
ficar por aqui, pois aqui ninguém é amigo de ninguém a
não ser na dor e no sofrimento.
Disse outro preso que estava a um canto.
- Se ajeita ai que vão servir a comida daqui a pouco.
Sentei-me em um dos cantos daquelas camas e logo depois
Armandão mandou que entregassem algumas coisas. Uma
escova e um tubo de pasta de dentes, uma toalha, um
lençol e um sabonete. Quanto ao cobertor Armandão disse
que iria pedir para os guardas e mais tarde me mandaria
pelas pipas.
Fiquei surpreso. Não esperava por aquilo tudo e nem
esperava ficar ali até o dia seguinte, mas a comida foi
servida e nada da minha liberdade. Fiquei desapontado,
mas nada pude fazer. Era um preso. Um recluso e só me
restava esperar.
Jantamos. Depois limparam a cela e foi escalado um dos
que ali estavam para ficar na responsabilidade das pipas
de noite. Estava curioso para saber como é que aquilo
funcionava e um dos presos, que já era veterano ali
perguntou se eu queria ver como funcionava aquilo.
- Sim!
Respondi.
- Daqui a pouco, depois da contagem começa o corre-corre
por aqui e as pipas são uma das maiores
responsabilidades daqui. Pisar na bola com isso pode
significar encrenca para quem estiver na responsa.
Entendeu?
- Sim! Entendi.
Não demorou muito e um dos guardas passou fazendo a
contagem. Foi-se embora e com ele a minha esperança de
ir embora naquele dia. O advogado me prometera que eu
iria embora até na quarta e nada e ai foi que me lembrei
do carcereiro me falando que aquele advogado era um
lixo. Não havia alternativa a não ser esperar o dia
seguinte.
Meia hora depois que o guarda fizera a contagem começou
o corre-corre das coisas por ali. O sistema do correio
interno deles era feito através de cordinhas que vinha
de outras celas e aram passadas de cela por cela até o
seu destino.
Como estávamos em um longo corredor em três andares as
coisas daquele lado do andar era simples. Passava-se por
um tipo de carretilha jogada de uma cela para a outra do
mesmo lado e para atingir o outro lado dos corredores e
por cima do vão que dava visão para o andar de baixo
simplesmente se era jogado uma sandália amarrada em uma
cordinha de um lado para o outro.
Era impressionante o movimento frenético daquelas
cordinhas e o mais engraçado era que um guarda ficava
sentado bem no meio daquele extenso corredor sem nada
falar ou fazer. Apenas ficava encostado no apoio da
cadeira e com a cabeça apoiada na parede.
- Ele não fala nada?
- Quem?
Perguntou o preso escalado para aquela noite.
- O guarda? Eles ficam ali e não falam nada?
- Não e às vezes até ajudam quando algo enrosca.
- Está de gozação comigo?
- Não! Eles não se metem a não ser que achem que tem
drogas correndo pela cadeia.
- Ah! Entendi. Então não passam drogas pelas cordinhas?
- Quem falou para você que não?
Respondeu sorrindo o preso.
Nem quis comentar e de repente o preso me disse...
- Pipa para você.
- Para mim?
- Sim! Está famoso aqui heim?
Não respondi e como estava curioso fui abrir. Era do
Cidão.
- Salve! Salve mano. Já soube que está por aqui e já
avisei meu irmão e espero que ele tenha ido falar com
você. Se precisar de algo é só pedir para ele ou para
mim. Estou na cela 141, da penita 1. Forte abraço.
Fiquei impressionado ainda mais. Como é que podia vir
mensagens de outra unidade até ali. Perguntei para o
preso ao meu lado e sorrindo ele não quis falar nada,
mas isso só poderia acontecer com a ajuda dos guardas,
mas preferi me calar. Boca fechada faz bem para a saúde
de qualquer um, ainda mais em cadeia e adotei esta regra
para mim.
Fiquei até tarde vendo ali toda aquela correria e fui
dormir era tarde da noite. Acabaram me dando uma burra
(cama) para dormir e deitei-me pensando que iria embora
naquele dia, quinta feira, sendo que já era o sexto dia
em que eu me encontrava preso.
O dia amanheceu e o sol bateu por aquela janela de
grades. A maioria dos outros presos já haviam se
levantado e tomado banho e esta foi outra coisa que eu
aprendi ali. Quem dormia no chão, que eles chamavam de
praia eram os primeiros a acordar e retirar tudo do meio
do chão, pois quando o café chegava e ele chegava logo
em torno das sete da manhã, nada podia atrapalhar a
passagem das pessoas ali dentro.
Outra coisa que eu soube era que o RO era o nome do
Recolhimento Obrigatório para presos que estavam na fase
de ir para a rua, transferência ou para se juntar à
população.
Levantei-me ansioso na esperança que viessem logo com o
meu alvará de soltura. Tomei um banho naquela água
gelada, porém pareceu-me no momento a melhor água do
mundo. Logo depois chegou o café e era bem melhor que a
do cadeião e isso se devia a que ali dentro, os irmão
tinham força contra a policia.
Terminamos de tomar café e não havia nada a se fazer a
não ser ficar ali jogando conversa fora e resolvi saber
por que cada um deles estava ali preso, pois pela minha
cabeça passou a idéia de ajudá-los se me fosse possível
quando eu saísse dali, porém mesmo pensando em fazer
isso nada disse a eles a fim de não lhes causar
ansiedade, pois caso prometesse e nada fizesse ai sim eu
teria alguns inimigos desnecessários contra mim.

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